terça-feira, 30 de outubro de 2018

A KRISTALLNACHT - A NOITE DOS VIDROS QUEBRADOS

Passados 80 anos do Holocausto, que foi, sem dúvida, uma das maiores tragédias sofridas pelo povo judeu, muitas perguntas e reflexões ainda são feitas sobre o fato. Questionamentos de todos os tipos. Não raro escuto que este ou aquele, descendentes até de família de rabinos abandonaram o Judaísmo tradicional por conta do que passaram no Holocausto. 

A verdade é que não nos cabe julgar!

Eu também tenho as minhas perguntas e não acredito que haja respostas satisfatórias para a maior parte delas. No meu modo de ver, a grande pergunta não deveria ser "onde estava D-us que permitiu tamanha bestialidade?", mas sim, "onde estava o homem?". 

Esta pergunta é universal e independe do grau de religiosidade ou, falta de, de cada um.
Cabe a cada um de nós conhecer e transmitir às próximas gerações.

Com este breve comentário, introduzo o post desta semana que falará sobre a Kristallnacht - a Noite dos Vidros Quebrados (ou Estilhaçados), que, na opinião de grandes historiadores, se constituiu em um divisor de águas e um "disparador" para a "oficialização" das perseguições antissemitas perpetradas pelos nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial. 

Lizkor velo lishkoach - Lembrar e não esquecer! 



CRONOLOGIA DO HOLOCAUSTO


A vida dos judeus na Europa nunca foi tão fácil. Desde que chegaram ao continente europeu, com o exílio romano, em 70 EC (da Era Comum), enfrentaram a rejeição e a expulsão; viveram apartados em guetos e bairros judaicos; foram alijados do mercado de trabalho e proibidos de exercer algumas profissões; sobreviveram aos cruzados e pogroms; conversão forçada, Inquisição e libelos de sangue. Comunidades inteiras foram varridas do mapa.

Partindo do século 20, assinalamos os fatos mais marcantes dessa trajetória.


ASCENSÃO DO NAZISMO  (1933 - 1938)


Em 30 de janeiro de 1933, Adolf Hitler foi nomeado chanceler alemão.

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Cena do documentário da cineasta alemã Leni Riefenstahl. 
Multidão aclamando Hitler no Congresso de Nuremberg. 

A partir de então, o destino dos judeus parecia estar selado. Hitler sempre foi bem claro sobre sua política de integridade e superioridade racial do povo alemão e, esta, não incluía, definitivamente, os judeus. Sua missão era expor e destruir a ameaça representada pelos judeus à qualidade da raça ariana.

Um outro agravante: Hitler culpava os judeus pela grande derrota e pela humilhação sofrida pela Alemanha, na Primeira Grande Guerra (1914 - 1918). Mesmo que os judeus tenham lutado lado a lado na guerra, foram condecorados por bravura e morreram como patriotas alemães.  Mesmo que depois da guerra, se esforçaram pela reconstrução do Estado alemão, eles foram estigmatizados e vítimas das crescentes ondas de antissemitismo que assolaram o país.

Hitler subiu ao poder com o discurso nacionalista que pregava a reconstrução e o restabelecimento da dignidade alemã. Pelos planos dele, isso envolvia a criação da Grande Alemanha, com a devolução das colônias alemãs perdidas pela Alemanha após a derrota na Guerra.

Aproveitando-se de uma manobra política, Hitler foi rapidamente ganhando espaço em busca da solidificação de sua ditadura. Expropriou todos os prédios do Partido Comunista. Fechou organizações pacifistas. Todos os que eram considerados inimigos do regime foram presos e torturados (muitas vezes até a morte). A propaganda antijudaica era muito forte em toda a Alemanha.

Já em 22 de Março, quase dois meses depois de assumir a chancelaria, deu-se a construção do primeiro campo de concentração (Dachau), administrado pelo violento pelotão da SA (inicialmente a força paramilitar nazista era chamada de "Sturmabteilung" ou "Divisões de Assalto"). Em 1º de Abril veio o boicote aos negócios e a lojas de judeus. Uma semana depois, foi a vez do decreto de afastamento dos judeus do funcionalismo público, do exército e das universidades. Enquanto isso, o terror imperava nas ruas.

Os judeus assistiam impotentes a tudo isso. Não podiam acreditar que, após séculos de permanência, de integração à sociedade alemã e de importantes contribuições às ciências, à medicina, às artes em geral e às indústrias alemãs, estivessem sendo escanteados de maneira vil e desleal. Dezenas de milhares de judeus deixaram a Alemanha. Com o escasseamento dos vistos de saída, logo o fluxo de emigração diminuiu, haja vista a dificuldade e a disposição dos países em receber os imigrantes judeus fugidos da guerra.

Nesse "meio tempo", Hitler escreveu o livro "Mein Kampf", volume I (1924) e volume II (1926), onde destilou o veneno antijudaico.

Em 2 de Agosto de 1934, com a morte de Alfred Hinderburg, Hitler se proclamou Führer  (líder) e Reichskanzler (chanceler) da Alemanha. Com isso, a máquina militar passou a servi-lo com lealdade e obediência. Vieram as leis raciais de Nuremberg (1935), quando os judeus deixaram de ser cidadãos alemães e foram proibidos de casar com arianos.

Em 17 de Junho de 1937, mais outro golpe: a nomeação como chefe da polícia alemã do sanguinário Heinrich Himmler, idealizador dos Campos de Concentração Nazistas, responsáveis pela eliminação de dois terços dos judeus da Europa.  A solução final de extermínio dos judeus estava ganhando forma.

Em 1938, a Alemanha anexou a Áustria e todos os decretos antissemitas passaram a vigorar também naquele país. Entendendo a urgência dos judeus de deixarem a Alemanha Nazista, o Presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, convocou uma conferência, que teve lugar em Évian-les-Bains (França), em 6 de Julho de 1938.  Trinta e dois países estavam representados na reunião. Infelizmente, e apesar dos grandes discursos, o encontro não foi bem sucedido, pois a maioria dos países demonstrou falta de vontade para receber os novos imigrantes judeus. Para Hitler, a atitude dos países validou sua política racial contra os judeus.

Em 28 de Outubro, dezessete mil judeus poloneses, que viviam na Alemanha, foram expulsos e  exilados na Polônia, com o seguinte agravante: foram rejeitados também na Polônia.

A KRISTALLNACHT - A NOITE DOS VIDROS QUEBRADOS 


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Durante os cinco primeiros anos no poder, os nazistas conseguiram transformar em miserável a vida dos judeus. Mas a ferocidade da perseguição pré-guerra atingiu seu ápice no episódio que ficou conhecido como Kristallnacht - A Noite dos Vidros Quebrados, em alemão, Novemberpogrom (o pogrom de novembro), um grande pogrom orquestrado nos bastidores pelo ministro da propaganda Nazista Joseph Goebbels, anos antes de acontecer na prática. 

Abrindo um parêntese, neste espaço chamaremos a Kristallnacht, de Noite dos Vidros Quebrados, porque sua tradução literal, a Noite dos Cristais é, ao meu ver, bem preconceituosa, pois remete à ideia de riqueza dos judeus. Já que os ricos, supostamente, têm cristais.

Voltando ao assunto! Nos bastidores, sim!  

O tratamento dispensado a seus familiares na Alemanha (lembrem que os judeus poloneses foram expulsos da Alemanha) motivou o jovem judeu Herschel Gryspan a entrar na embaixada alemã, em Paris, e assassinar a tiros um oficial Nazista do segundo escalão.

Os alemães precisaram somente de um pretexto para retaliar e desencadear uma ação antissemita nacional, sem precedentes. O assassinato em Paris serviu perfeitamente para esse propósito.

Organizado pelo Partido Nazista e bem orientado por Goebbels, o pogrom deveria parecer como uma revolta espontânea da população. Soldados da SA trocaram suas fardas por roupas civis e atacaram selvagemente seus objetivos: os judeus e suas propriedades.

SALDO NEGATIVO


Nas noites de 9 e 10 de Novembro de 1938, a Kristallnacht, deixou um prejuízo vultoso à população judaica, que teve 267 sinagogas e edifícios comunitários incendiados, propriedades particulares saqueadas e dezenas de milhares de estabelecimentos comerciais destruídos.  Nessas ações, cerca de 30 mil judeus foram presos e enviados aos campos de concentração, algumas mulheres também foram confinadas nas prisões locais. Houve dezenas de óbitos.


Ver a imagem de origem



A comunidade judaica recebeu uma pesada multa de 1 milhão de Reichmarks (cerca de U$ 400 mil dólares) pelos prejuízos causados pela Kristallnacht, pagos pelo confisco de 20% das propriedades de cada judeu alemão. Além do prejuízo material, os judeus foram obrigados a limpar toda a sujeira deixada pela destruição.

Após o pogrom, os judeus foram sistematicamente excluídos da vida pública.  O mesmo se estendeu a crianças e aos adolescentes que, além de não poderem frequentar lugares públicos, foram expulsos de suas escolas.

O final dessa História, infelizmente, conhecemos: o assassinato de 6 milhões de judeus, dentre eles, 1,5 milhão de crianças. Que a lembrança desses inocentes seja abençoada.

FONTES

http://www.morasha.com.br/holocausto/relembrando-a-kristallnacht.html
https://pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/1348469/jewish/Kristallnacht.htm
https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/kristallnacht
GILBERT, Martin. O Holocausto. São Paulo: Editora Hucitec, 2010.

terça-feira, 23 de outubro de 2018

O MASSACRE DAS CRIANÇAS JUDIAS EM SÃO TOMÉ

Imagem relacionada

Esta é a paradisíaca Ilha de São Tomé. 

Com uma área total de 1001 km2, a Ilha de São Tomé, a Ilha do Príncipe e outras pequenas ilhas compõem a República Democrática de São Tomé e Príncipe (capital São Tomé), um país insular africano banhado pelo Golfo da Guiné, cujo idioma oficial é o português.

A Ilha de São Tomé faz parte da História Judaica. Entretanto (e, infelizmente), não entrou pela "porta da frente" usando uma linguagem mais popular, pois foi palco de um dos mais desumanos episódios vividos pelos judeus ao longo de toda a sua existência: o massacre das crianças judias em São Tomé. Um obscuro e desconhecido capítulo da nossa História, que será assunto deste post.

CONTEXTO


Portugal, então governada por D. João II (1455 - 1495), vivia o 'boom' da era dos Grandes Descobrimentos ou das Grandes Navegações, quando a busca por rotas comerciais alternativas levou os portugueses a encontrarem novas terras não-povoadas, que, anexadas, passaram a integrar o reino português, na condição de colônias. 

Havia muito interesse em povoar essas colônias, porém, este era um processo complicado e que acarretava uma elevada despesa aos cofres do reino. D. João II lançou mão de algumas estratégias para amenizar os altos custos advindos da colonização das novas terras, dentre elas, a adoção do sistema de capitanias e donatários. O que fez o rei?

Dividiu as colônias em largas áreas de terra, as capitanias, que foram doadas a aristocratas portugueses, os donatários, que, fiéis a Portugal, tinham a incumbência de gerir e explorar, com recursos próprios, as riquezas naturais da região, destinando parte dos produtos e dos lucros aos cofres da Coroa portuguesa.  

Mas, o sistema de capitanias e donatários ainda não resolvia o problema da colonização efetiva das novas terras conquistadas.

A VIDA EM PORTUGAL


Em 1492, D João II comprometeu-se com os líderes do Judaísmo espanhol no recebimento de dezenas de milhares de refugiados judeus daquele país, forçados a deixar a Espanha pelo Édito de Expulsão dos reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela.

O rei português estava de olho nos lucros advindos dos expatriados (vide post sobre D. Gracia Nassi): "Somente por interesse, foi o sombrio e misantropo rei impelido a esse ato aparentemente humano, pois, com o dinheiro dos judeus pretendia restabelecer o Tesouro do Estado" (Kayserling, p. 146).  

Os judeus espanhóis chegaram em Portugal e, somados à comunidade judaica local, perfizeram consideráveis 15% da população de Portugal (Novinsky, p. 41). Este número não passou desapercebido pelos portugueses, que, incitados por fanáticos religiosos, promoveram ataques à fé judaica, com um sem número de tentativas de convertê-los ao catolicismo.

Um outro agravante foi a proliferação da peste negra no país. Os judeus foram, mais uma vez, penalizados e acusados de causar a morte de milhares de portugueses, trazendo a doença ao país.

Pressionados, os judeus foram impelidos a deixar o país. Os que conseguiram embarcar foram massacrados dentro dos navios que os transportavam. Os judeus remanescentes foram vendidos ou doados como escravos, à revelia, para a nobreza.

Realocar parte deste grande contingente humano para as colônias resolveria pelo menos dois problemas: afastar os judeus das grandes cidades portuguesas e aproveitar o potencial humano para povoar as novas terras. Os judeus, sem opção de escolher seus destinos, eram encaminhados às novas colônias. E foi assim que Portugal conseguiu colonizar essas terras, dentre elas, a Ilha de São Tomé.

Mas D. João II não parou por aí!

A ILHA DE SÃO TOMÉ


Descoberta em 1471, a Ilha de São Tomé, também chamada de Ilhas Desertas, precisava ser habitada. Em quase vinte anos, duas tentativas já haviam sido feitas: uma, em 1490, com o fidalgo João Pereira e outra com João de Paiva. Ambas fracassaram nos seus intentos.

Em 1493, uma terceira tentativa foi feita, com a doação da terra ao distinto Álvaro de Caminha. Em carta, o rei determinava que o donatário deveria habitar na ilha, além do pacote de obrigações do sistema das capitanias.

O MASSACRE DAS CRIANÇAS EM SÃO TOMÉ


Ainda em 1493, o rei português determinou que crianças judias espanholas, de dois a dez anos de idade, filhas daqueles judeus que permaneceram em Portugal, fossem tiradas de seus pais, sem piedade, batizadas à força e deportadas à Ilha de São Tomé, para que povoassem o lugar. Dizem que o decreto atingiu também a comunidade sefaradita, que há muito habitava Portugal.
O rei enviava para São Tomé degredados, marginais, escórias da sociedade e, também, judeus.

"Quem não ouviu os soluços e os gritos dos pais, ao lhes serem violentamente arrebatados os filhos e levados para as naus, não sabe o que é tristeza, aflição e desgraça" (Kayserling, p. 152).

As cenas e os casos eram aterrorizantes. Nem os apelos desesperados das mães para que pelo menos pudessem acompanhar seus filhos foram considerados.

O cronista marrano Samuel Usque resgatou o episódio no livro "Consolações às tribulações de Israel". Publicado posteriormente em 1553, por Abraão Usque; o livro foi dedicado 
à  D. Gracia Hanassí. Segundo ele, muitas crianças foram devoradas pelas feras que habitavam o lugar.

O livro "Os judeus em Portugal", publicado em 1895, de autoria do Prof. J. Mendes dos Remédios, descreveu a problemática de uma mulher de quem haviam levados seus sete filhos:

"A desgraçada sabendo que o rei se dirigia à igreja, sai-lhe ao encontro e, lançando-se à frente dos cavalos que puxavam o coche real, suplica entre lágrimas que lhe deem pelo menos o mais novo dos filhos - "... Afastai-a da minha presença! '- disse o rei, e como as súplicas aumentassem, foi necessário afastá-la à força. 'Deixai-a' - afirmou D. João II - 'ela é como uma cadela a quem roubaram os cachorros ...'".

Das 2.000 crianças judias tomadas à força, apenas 600 sobreviveram.  

O cronista judeu Yosef Hacohen escreveu:

"Já em São Tomé, alguns judeus viraram presa fácil dos lagartos, e a maioria acabou morrendo por falta de água, comida e moradia segura".

O massacre das crianças em São Tomé foi escrito com o sangue de inocentes crianças, entrando para as páginas da História Judaica como mais um capítulo da sombria História de perseguição dos judeus.

PALAVRAS FINAIS ... NUNCA AS ÚLTIMAS


Não vou perguntar se gostaram do post, porque não acho que alguém goste de narrativas tão trágicas. Quem é incapaz de sentir em sua própria pele o sofrimento desses pais e de suas crianças, no momento da separação? Por outro lado, não podemos fazer de conta que isso não aconteceu. 

Hoje, mais do que nunca, com o ressurgimento dos movimentos antissemitas, devemos conhecer nossa História. E aprender com ela. Como sabiamente disse o rabino e historiador Berel Wein: "Conhecer o passado do povo judeu é acreditar em seu futuro". Acrescento, não repetindo os erros do passado, podemos construir um futuro melhor e mais promissor, não somente ao povo judeu, mas a toda a humanidade.

"Em nome de Portugal, quero pedir perdão aos judeus pelas perseguições de que foram vítimas em nossa terra". Mario Soares, presidente da República Portuguesa, num discurso proferido em Castelo de Vide, 17/03/1989.


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Até a próxima!

 FONTES:

http://porterrassefarad.blogspot.com/2014/01/em-1506-estariam-apenas-vivas-600.html
http://zivabdavid.blogspot.com/2013/05/judeus-em-portugal-no-seculo-xv.html
http://eshtanamidia.blogspot.com/2017/10/voce-sabia-as-criancas-judias-enviadas.html
http://www.morasha.com.br/historia-judaica-moderna/judeus-ibericos-deportados-a-sao-tome-entre-1492-8.html
CARNEIRO, Paulo. Caminhos Cruzados. Rio de Janeiro: Editora Autografia, 2015.
KAYSERLING, Meyer. História dos judeus em Portugal. São Paulo: Editora Pioneira, 1975.
NOVINSKY, Anita. Os judeus que construíram o Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2015.


terça-feira, 9 de outubro de 2018

D. GRACIA NASSI: UMA SENHORA ALÉM DE SUA ÉPOCA

Nascida em Lisboa (Portugal), em 1510, na conturbada época da Inquisição, D. Gracia (correspondente Hebraico do nome Hannah), foi batizada de acordo com os rituais católicos, recebendo o nome de Beatriz de Luna.

Seus pais, Álvaro de Luna de Aragão e Philipa Benveniste, pertenciam a uma nobre estirpe de abastados comerciantes, que foram exilados da Espanha por força do Édito de Expulsão dos judeus, em 1492, assinado pelos reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela.

Mediante o pagamento de elevada soma em dinheiro, a família juntou-se a milhares de outros judeus provenientes da Espanha, que preferiram sair do país a se converter à fé católica e escolheram Portugal como um possível destino seguro. 

Na época, D. João II era o soberano do país. 

Abrindo um parênteses para melhor entendimento do assunto, o "acolhimento" dos judeus em Portugal foi motivado por interesses econômicos por parte do monarca português, que recebeu no país duas classes de judeus:

A primeira, que pagando a elevada soma de 600 mil cruzados, foi autorizada a residir no país. Cerca de 600 famílias arcaram com a exorbitante soma, dentre elas, estava a família da, ainda não-nascida, Gracia. A outra classe, com adesão de milhares de judeus, pagou 8 cruzados por adulto,  pela estada de somente 8 meses no país. Para este grupo, o Rei se comprometeu a oferecer navios, a preços módicos, para transportá-los para outros destinos.  A promessa foi parcialmente cumprida. Os judeus que ficaram em Portugal foram vendidos ou doados como escravos.


Beatriz de Luna e sua filha única Reyna

Com a morte de D. João II, em 1495, assumiu o trono D. Manuel I.

Diante da condição imposta pelos reis católicos Fernando e Isabel, para o seu matrimônio com sua filha, também chamada de Isabel, o Rei D. Manuel I decidiu também converter ou expulsar os judeus do país, assinando o Édito de Expulsão de Portugal, em 1496. Em 1497, cerca de 20 mil judeus foram convertidos à força, extinguindo a população judaica do país.

Desde então, os Mendes, sobrenome cristão adotado pelas famílias De Luna-Benveniste, viviam a vida dupla dos conversos judeus na época. 

Em público portavam-se como católicos observantes. Frequentavam a missa aos domingos e participavam das cerimônias públicas promovidas pela Igreja e pela sociedade portuguesa. 

Em casa, escondidos em porões e sótãos, praticavam o Judaísmo, crime que, se descoberto, era passível de humilhações e morte na estaca, quando eram queimados vivos nas fogueiras dos famosos e disputados Autos de Fé (cerimônias públicas onde eram lidas e executadas as sentenças do Tribunal do Santo Ofício).
                                                                                          
A FAMÍLIA DE GRACIA NASSÍ


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D. Gracia casou-se com Francisco Mendes (nome judaico Tzemach), irmão de sua mãe, em 1528, num casamento católico público; depois, na privacidade da família, houve a cerimônia judaica, inclusive com a assinatura de uma Ketubá (contrato nupcial judaico). 

Desta união, em 1534, nasceu Reyna, filha única do casal. 

Para manter segredo das práticas judaicas e evitar a assimilação, eram comuns os casamentos entre pessoas da mesma família ou entre conversos. Assim foi na família Mendes, quando Brianda, irmã de D. Gracia, casou-se com o tio Diogo Mendes (nome judaico Meir) e Reyna com o primo João Micas (Joseph Nassí). (Vide quadro acima).

Francisco, em sociedade com o irmão, Diogo, dirigia um poderoso comércio internacional, que incluía um banco, bem estabelecido em toda a Europa e ao redor do Mediterrâneo. Com os descobrimentos marítimos, a Casa dos Mendes se tornou forte no comércio das especiarias.


AS VIAGENS DE D. GRACIA


Com a morte do marido, em 1538, D. Gracia deixou Portugal clandestinamente, em direção à Antuérpia, onde se encontrou com Diogo. Em 1542, com a morte do cunhado, D. Gracia assumiu o comando total das empresas da família, assessorada pelos sobrinhos. A ida de D. Gracia a Antuérpia também foi motivada pelo estabelecimento do Tribunal da Inquisição, em Portugal e o risco que este representava à fortuna dos Mendes. A Antuérpia era, também, para ela, a primeira etapa em direção ao Império Otomano.

Sendo muito bem-sucedida na função, ganhou o respeito de um mundo, até então, dominado pelos homens. D. Gracia conseguiu influenciar reis e governantes, em prol da salvação do maior número possível de cristãos novos, retirando-os da zona de perigo, longe das garras dos Tribunais da Inquisição. Com sua fortuna e prestígio, ela conseguiu libertar muitos cristãos- novos condenados, estabelecendo para eles rotas de fugas e destino mais seguros.

Da Antuérpia, D. Gracia e sua família dirigiram-se para Veneza, onde encontraram judeus que seguiam abertamente a fé judaica. Apesar da "tolerância", os judeus viviam em guetos e usavam roupas especiais. O poder econômico fez com que estas leis não fossem aplicadas à família Mendes. 

Em 1548, com o estabelecimento da Inquisição na cidade, D. Gracia planejou efetivamente sua ida ao Império Otomano. D. Gracia enfrentou um grande desafio ao ser denunciada ao Senado veneziano, por sua própria irmã, Brianda, que a acusou de judaizar e de planejar levar sua fortuna para o Império Otomano. Duas acusações gravíssimas! 

Brianda teve suas motivações. Ela não queria ir para o Império Otomano com a irmã, ao mesmo tempo, ambicionava ter acesso e gerir a sua parte na fortuna dos Mendes da maneira que quisesse, longe do controle da irmã. Seu marido, Diogo Mendes, havia deixado a fortuna aos cuidados de D. Gracia, até que a filha do casal, Beatriz (Gracia La Chica) completasse a maioridade.

A Europa representava grande perigo aos judeus e conversos.  D. Gracia fugiu com a filha Reyna para o Império Otomano, em 1552, onde recebeu a proteção do sultão Suleiman, o Magnífico (1520 - 1566). A família se estabeleceu em Istambul.

Em Istambul, D. Gracia assumiu definitivamente o Judaísmo, passando inclusive a usar seu nome e sobrenome judaico. Lá, também realizou outro grande sonho de vida, casar sua filha Reyna, com um judeu, segundo as leis da Torá. Fato que aconteceu em 1554, quando Reyna se casou com o primo, que também assumiu o Judaísmo, Joseph Nassí.

Em 1560, ela, juntamente com o sobrinho Joseph Nassí, arrendaram a cidade de Tiberíades, na Terra Santa, das mãos do Sultão Suleiman, por uma elevada soma em dinheiro. D. Gracia tinha planos de estabelecer alguns assentamentos judaicos aos refugiados judeus da Espanha e Portugal. Muitos historiadores consideram a iniciativa de D. Gracia, como uma das primeiras iniciativas do Sionismo moderno em prol da reconstrução do Lar Judaico na Terra de Israel.  

Infelizmente, este projeto não foi levado a frente por conta da morte de sua patrona, D. Gracia, que ocorreu em 1569, em Istambul. Para mostrar sua grandeza de caráter, ela não deixou de despender muito esforço para trazer os restos mortais de seu marido Francisco, de Lisboa, para que fosse enterrado em Jerusalém, mesmo ela própria não conseguiu ser enterrada em Israel, como era de seu desejo.

A morte de D. Gracia foi pranteada por rabinos, líderes comunitários, pobres e eruditos da Torá. Homens e mulheres que tiveram suas vidas "tocadas" pela coragem e força desta valorosa mulher. 


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FEITOS DE D. GRACIA


Em Istambul, D. Gracia passou a praticar abertamente ações de Chessed (bondades), ajudando, com sua fortuna os menos favorecidos. Construiu sinagogas, Ieshivot (Casas de Estudo) e bibliotecas. Ajudou milhares de marranos a retornarem a suas raízes judaicas. Incentivou os estudos acadêmicos, principalmente, os estudantes da Torá. Publicou obras de cunho judaico, dentre elas, a primeira Bíblia em ladino, conhecida como a Bíblia de Ferrara, em 1552, que beneficiou judeus que não sabiam ler em Hebraico.

Não foi à toa que o famoso cronista judeu, Samuel Uísque, a chamou de "o coração de seu povo". E nos versos de Saadiah Lungo, poeta de Salônica (século XVI):

"De tudo o que nós mais estimamos, estamos desapossados,
Em todas as terras da tua dispersão, Ariel;
E cada cidade-mãe de Israel
Chora sobre a sorte dos seus filhos deixados na angústia,
A cintilação apagou-se;
A minha tristeza é amarga
E o meu coração quebrado."

D. Gracia ficou conhecida com Haguiveret - A Senhora, por sua benevolência para com os judeus, especialmente, durante e depois da Inquisição, que foi um dos mais sombrios e dolorosos episódios da História Judaica.


HOMENAGENS PÓSTUMAS


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Selo israelense, emitido em 2010, em homenagem aos 500 anos de nascimento da benfeitora Gracia Nassí.









 Medalha comemorativa D. Gracia Nassí





FONTES:

http://www.redejudiariasportugal.com/index.php/pt/eventos1/item/140-dona-gracia-nassi
https://www.cafetorah.com/dona-gracia-mendes-nasi-uma-mulher-judia-de-poder/
http://www.morasha.com.br/biografias/dona-gracia-nasi-1.html
http://www.morasha.com.br/comunidades-da-diaspora-1/o-tempo-dos-judeus-em-portugal.html
https://didierlong.com/2017/03/08/dona-gracia-mendez-nassi-1510-1568-lange-des-marranes/
http://www.lphinfo.com/gracia-nassi-la-grande-dame-juive-de-la-renaissance/
https://abemdanacao.blogs.sapo.pt/a-senhora-1467029