terça-feira, 31 de julho de 2018

A QUEIMA DO TALMUD:1242

Ao longo da história, os judeus foram hostilizados de diversas maneiras, desde uma "simples" ofensa verbal (ou escrita) aos casos mais graves de violência física, que, em muitas circunstâncias, culminava com a morte do indivíduo ou o assassinato em massa de sua comunidade. 

Houve situações em que a fúria antijudaica era direcionada ao patrimônio, causando prejuízos enormes e, ainda deixava uma "conta" a ser paga pela própria comunidade judaica lesada.

Existiu um outro tipo de manifestação ligada à destruição moral e espiritual. Esta, talvez até mais devastadora que as já citadas anteriormente, e que oferecia grande perigo à continuidade do Judaísmo. Isso visava enfraquecer o judeu no âmago de suas crenças, atingindo sua identidade judaica. 

Nesta categoria, além da proibição do cumprimento das mitzvot (preceitos) essenciais à manutenção do Judaísmo, se encontrava a destruição dos meios (objetos) que viabilizavam e sustentavam os judeus nessas práticas: os seus livros sagrados.

Vale ressaltar que os ataques perpetrados contra os judeus podiam ter nos ingredientes a combinação de duas ou mais formas de agressão.



                           Impressão antiga do Talmud com o comentário do exegeta Rashi 



"VETALMUD TORÁ KENEGUED KULAM" - "E O ESTUDO DA TORÁ EQUIVALE A TODOS ELES (OS PRECEITOS JUDAICOS)"


Desde os primórdios, a vida judaica gira em torno de um livro: a Torá - a Bíblia judaica. 

A Torá compreende uma parte escrita (Torá Escrita), ou seja, toda a estrutura dos 24 livros do Tanach e uma parte oral (Torá Oral), que foi transmitida de boca em boca pelas gerações e que, devido as perseguições e invasões à Terra de Israel, a partir do século 2, ganhou uma forma escrita, a Mishná. 

A Mishná se ocupa no entendimento prático dos 613 mandamentos e suas ramificações, na maior parte das vezes citadas de forma muito reduzida na Torá Escrita. (Para saber mais sobre o assunto, acesse o link  para o post A Periodização da História Judaica).

A palavra Torá advém da linguagem de Horaá - instrução e guia. Metaforicamente equivale a uma planta na mão de um arquiteto. Na Torá, o judeu encontra os instrumentos necessários para viver e lidar equilibradamente consigo mesmo, com o mundo a sua volta e com Seu Criador.  Para o judeu, a Torá é a fonte de vida e a razão de sua existência e tem a função de iluminar o caminho que deve ser seguido

O Talmud conta a seguinte história: 

Quando os romanos dominavam a Terra de Israel (63 AEC - 324 EC), eles tentaram de todas as formas erradicar o Judaísmo. Na época, quem fosse pego estudando Torá estaria passível de pena de morte. Os romanos achavam que isso garantiria a descontinuidade do Judaísmo.

Rabi Akiva (50 EC - 135 EC), um dos maiores líderes do povo judeu de todos os tempos e que viveu naquela época, concluiu que a proibição do estudo da Torá colocava a integridade espiritual do povo judeu em risco. O sábio entendeu que esta era uma questão prioritária e, mesmo que colocasse em risco sua integridade física, manteve seus estudos, sem temer as consequências. E foi questionado por um colega.

Imagem relacionadaRabi Akiva respondeu com uma parábola:

Uma raposa caminhava ao longo de um rio, quando percebeu peixes nadando freneticamente de um lado para outro. Ela gritou: "De que estão fugindo?"

Os peixes responderam: "Dos pescadores e de suas redes!"

A raposa disse: "Venham para a terra seca! Nós viveremos juntos e em paz!"

Os peixes perguntaram: "Raposa, onde está sua esperteza? Se corremos perigo na água, que é nosso habitat natural, mais ainda na terra seca, que é morte certa!

Rabi Akiva concluiu: "Se estamos em perigo quando estudamos Torá, que é a fonte de nossa vida, mais ainda estaremos em perigo sem ela!".


Ainda sobre o estudo da Torá.


O Rabi Moshe ben Maimon, o Rambam (1135 -1204), destacou que o estudo da Torá era imprescindível porque levava à prática (Leis do Estudo da Torá 3:3). Já o Rabi Moshe ben Chaim Luzzatto (1707 - 1746) escreveu: "O estudo da Torá é uma necessidade autoevidente. Sem ele, é impossível servir a D-us, pois se não se sabe o que é ordenado a fazer, como pode fazê-lo?". 

Os inimigos do povo judeu sabiam muito bem como e em quê atingir o povo judeu. Dado que os judeus estavam dispostos a arriscar suas vidas pela Torá, só restava-lhes investir contra o espírito do Judaísmo, contido nos livros sagrados.

A queima do(s) livro(s) do Povo do Livro foi considerada uma verdadeira catástrofe para o Judaísmo, a ponto de ser tema de uma Elegia (Kinot), composta pelo grande Maharam de Rothenburg, Rabi Meir ben Baruch (1215 -1293),  lida em Tisha Beav (9 de Av).  


A QUEIMA DO TALMUD: 1242



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Depois de a Torá Oral (Mishná) ter sido compilada pelo grande Rabi Iehudá Hanassí, essa obra passou a ser intensamente debatida e estudada pelos sábios das gerações posteriores. Eventualmente, os resultados dessas discussões e comentários foram registrados e receberam o nome de Guemará. 

A Mishná e a Guemará deram origem a duas grandes obras: 
  • O Talmud Ierushalmi (de Jerusalém), compilado em hebraico, na Terra de Israel, no século 4, pelo grande sábio Rabi Iochanan.
  • O Talmud Bavli (da Babilônia), compilado em aramaico, na Babilônia, no final do século 5, pelos grandes sábios Rav Ashi e Ravina.

O grande estudioso contemporâneo do Talmud, Rabi Rabi Adin Steinzaltz escreveu: "Se a Torá é a pedra fundamental do Judaísmo, o Talmud é seu pilar central". O Talmud é tão essencial aos judeus, que, ao longo de sua existência, foi proibido por pelo menos 15 vezes, em diferentes épocas e países, por aqueles que tentavam destruir o Judaísmo.

Como a Bíblia (a Torá Escrita) era uma obra comum entre as religiões judaica e cristã, alguns líderes da Igreja concluíram que o Talmud, por ser uma obra de uso e estudo exclusivo dos judeus, os mantinha fortes na sua fé. Sem ele, os judeus se tornariam mais vulneráveis à ideia de conversão ao Cristianismo. Foi com esta justificativa que o Talmud passou a ser atacado.

O caso mais emblemático de investida contra o Talmud ocorreu em Paris, no ano de 1242, quando 24 carroças repletas com os manuscritos do livro foram queimadas em praça pública. 

Vamos aos fatos! 

O apóstata Nicholas Donin, ex-aluno da Ieshivá do ilustre Rabi Iechiel ben Iossef, de Paris, conhecendo as tendências antijudaicas da Igreja Católica, denunciou formalmente ao Papa Gregório IX, a magna obra do Talmud. Na oportunidade, Donin apontou 35 fragilidades da fé cristã, trazidas e discutidas no Talmud e, que, do ponto de vista das doutrinas católicas eram heréticas, portanto, passíveis de penalidade, caso comprovadas.  

Antes de cumprir as determinações do Papa, que ordenava a queima de livros heréticos, o Rei Luis IX decidiu fazer um debate, no qual quatro das maiores autoridades rabínicas da França, inclusive o Rabi Iechiel de Paris, foram "convidadas" a responder às acusações de Donin.

Esse episódio ficou conhecido como Mishpat Paris - o Julgamento de Paris e, foi considerado pelos historiadores como uma farsa jurídica, haja vista que a condenação do Talmud era iminente. Ao final, conforme o previsto, o Talmud foi condenado.

O Rei Luis IX ordenou o confisco de todos os exemplares das Sinagogas, Ieshivot e de particulares. Dois anos depois, a pena foi cumprida em 17 de Junho. Essa catástrofe afligiu a comunidade judaica francesa, não somente pelo desrespeito à santidade do Talmud, mas pela dificuldade encontrada na aquisição da obra. A destruição deixou as Ieshivot sem nenhum exemplar para o estudo. E aqui, mais uma vez, os judeus mostraram a capacidade de superação e não deixaram que este episódio determinasse o fim do Judaísmo francês. Tomando a dianteira, Rabi Iechiel de Paris continuou ensinando o Talmud a seus alunos usando sua memória e a experiência de anos de estudo da obra.

A QUEIMA DOS LIVROS PELA HISTÓRIA


Infelizmente, o episódio de Paris não foi um caso isolado. Antes e depois dele tivemos alguns momentos em que o Talmud e outros livros sagrados foram atacados. Mas, deixaremos este assunto para uma outra ocasião.

Até a próxima!




                                             Em 1933, Nazistas queimam livros judaicos

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